Em determinados momentos da vida maçônica, a tensão entre o ideal fraterno e o rigor iniciático se torna visível e inevitável. A Loja, como célula viva da Ordem, se depara com escolhas que testam sua maturidade, seu compromisso com o símbolo e sua fidelidade ao caminho do aperfeiçoamento. Mas o que acontece quando o coração benevolente da fraternidade fala mais alto que a consciência iniciática da verdade?
A sabatina, prática adotada por diversas Lojas como rito avaliativo do irmão que pleiteia o aumento de salário, é, por excelência, um espelho. Diante dela, o obreiro se vê refletido não apenas em suas palavras, mas também em seus silêncios, em seus gestos, em sua preparação. Titubeios podem nascer do nervosismo, é verdade. Mas a ausência de domínio dos fundamentos simbólicos, a insegurança no uso da palavra ritual, ou o desconhecimento de elementos básicos como o painel do grau, revelam não a emoção, mas a falta de estudo.
E quando, diante dessa realidade, a Loja escolhe o caminho do silêncio ou, pior, o da condescendência fraternal, algo se perde. Perde-se a clareza da trilha. Envia-se uma mensagem ao irmão, e a todos os demais, de que o esforço e o estudo não são essenciais, que basta a boa vontade para ascender. Enfraquece-se a pedagogia simbólica do rito, que deveria ensinar pelo mérito e pela conquista. E cria-se, assim, um precedente perigoso, no qual a benevolência se sobrepõe à justiça, e o sentimento passa a pesar mais que o símbolo.
O filósofo francês André Comte-Sponville nos lembra que “a indulgência sem exigência não é virtude, mas abandono”. A fraternidade, sem o contrapeso da responsabilidade, corre o risco de tornar-se uma zona de conforto moral, e não um círculo de elevação espiritual. Quando o discurso do acolhimento é usado como escudo contra a crítica legítima, sufoca-se o ar da Verdade que deveria circular livremente dentro do Templo.
Essa mesma lógica silenciosa tem início, por vezes, antes mesmo do ingresso do candidato à Ordem. O processo de sindicância, cujo propósito é resguardar a integridade moral e filosófica da Loja, tem sido tratado por alguns como mera formalidade. O zelo que deveria guiar o sindicante é frequentemente substituído por observações superficiais ou juízos vagos, com conclusões que não se sustentam diante do próprio texto apresentado.
Não é incomum encontrar pareceres que, mesmo apontando dúvidas ou reservas quanto à adequação do candidato, terminam com expressões como: "à luz do costume da Loja, recomendo que o candidato seja admitido". Frases assim revelam um conflito interno do sindicante, como se a tradição informal de acolhimento se impusesse à convicção pessoal. Nesse instante, não apenas se desrespeita o papel do sindicante, mas se fragiliza toda a função iniciática da sindicância, transformando um filtro de valor em mera formalidade burocrática.
E mesmo quando esse tipo de parecer é lido em Loja, e a palavra é aberta, reina novamente o silêncio, não por convicção, mas por conveniência. O temor de parecer severo, ou de desafiar vozes mais antigas, aprisiona as consciências que deveriam ser livres. Como esperar rigor na sabatina, se já na sindicância se abriu mão da exigência?
Não é fácil romper esse ciclo. O peso simbólico da antiguidade é real, mas não deve se sobrepor ao dever de zelo. O zelo, neste caso, é pela doutrina, pela pedagogia do rito, pela integridade do processo iniciático. Talvez o mais difícil seja admitir que, muitas vezes, todos na Loja sabem que algo não foi como deveria, mas escolhem manter o ritual da unanimidade, em vez de defender a integridade do símbolo. Isso é compreensível, somos humanos, mas não pode se tornar regra. Porque, se a Maçonaria é o templo da verdade, como poderá ela resistir aos alicerces da conveniência?
Esse dilema não é de um irmão só, nem de uma Loja só. Ele atravessa as colunas do mundo iniciático, e talvez por isso precise ser dito. Porque calar, nesses momentos, é uma forma de consentimento. E, como já disse Marco Aurélio, imperador-filósofo: “O que não é bom para a colmeia, não pode ser bom para a abelha.”
Excelente texto Meu Irmão!
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