Há um símbolo que acompanha silenciosamente cada Aprendiz ao adentrar o Templo: a da pedra bruta. Ali está ela, inerte e imperfeita, à espera de ser transformada. Ao seu lado, repousam o maço e o cinzel, não como adornos, mas como convites simbólicos a uma jornada que é antes de tudo interior. O Rito Escocês Antigo e Aceito (REAA) nos ensina que essa pedra somos nós mesmos. E que a lapidação exige mais do que boa intenção: exige vontade firme e razão disciplinada. Além disso, o rito nos lembra que a busca incessante da Verdade é uma trajetória contínua e ininterrupta, um dos pilares centrais da Maçonaria, que exige do iniciado um esforço constante para distinguir o real do ilusório. É com essas duas ferramentas que cada um de nós deve trabalhar incessantemente sobre si.
A centralidade da alegoria da pedra bruta e das ferramentas da vontade e da razão ressalta a natureza eminentemente pessoal do desenvolvimento maçônico. Cada Aprendiz é o artífice de sua própria transformação, um processo que demanda introspecção e aplicação constante dos princípios aprendidos. Nesse contexto de ênfase no trabalho individual, surge uma ideia que, embora busque descrever um fenômeno inerente às reuniões fraternas, merece uma análise cuidadosa à luz da tradição e dos fundamentos do Rito: a noção da egrégora maçônica.
É uma preocupação a disseminação da ideia da chamada "egrégora maçônica" em nossos meios. Definida frequentemente como uma entidade espiritual ou campo energético gerado pela reunião dos maçons, essa noção pode seduzir por prometer uma força invisível capaz de nos envolver, unir e elevar. Contudo, essa terminologia e seu conceito parecem carecer de raízes na tradição maçônica autêntica. Seria essa uma importação de ideias exteriores, desviando o foco do cerne do trabalho maçônico? Estaríamos, talvez, trocando as ferramentas da autodisciplina pela expectativa de que a pedra se molde por uma influência externa?
A curiosa hierarquia vibracional apresentada, que escala desde minerais até a Divindade, sugerindo que a diferença seria apenas de "frequência", ecoa especulações teosóficas e espiritualistas, igualmente alheias à tradição do REAA. A ideia de que o maçom poderia, com o conhecimento vibracional correto, alcançar feitos quase mágicos de influência psíquica e alteração do mundo físico soa mais como ficção científica do que como a proposta de aprimoramento moral e intelectual do rito.
A interpretação de eventos bíblicos e ensinamentos de Jesus como prova do princípio da egrégora, através de um misterioso "alinhamento de vibrações", parece forçar uma leitura esotérica sobre textos que possuem suas próprias camadas de significado teológico e histórico, sem necessariamente se alinharem a essa peculiar visão. A descrição da egrégora como uma "entidade autônoma e poderosa" com capacidade de realizar desejos no mundo material beira o espiritualismo supersticioso, distante da filosofia maçônica.
Finalmente, a atribuição de significados ocultos e poderes quase sobrenaturais à Corda de 81 Nós, como a representação da imortalidade da alma por uma "união mística" ou um elo mágico com a humanidade, eleva um ornamento simbólico a um patamar de objeto de poder esotérico, sem evidências na tradição racional do REAA.
Autores como Jorge Adoum, Rizzardo da Camino e Raymundo d’Elia Junior têm sido amplamente referenciados quando se fala em egrégora. Em O Livro Mágico, Adoum a descreve como uma força astral viva, alimentada pelas emoções e pensamentos coletivos dos maçons. Rizzardo da Camino, em Simbolismo do Primeiro Grau – Aprendiz e O Aprendizado Maçônico, reforça essa ideia ao atribuir à egrégora o papel de protetora espiritual da Loja. Já Raymundo d’Elia Junior, em Maçonaria – 100 Instruções de Aprendiz, propõe que a harmonia dos trabalhos depende da formação e do "reforço" dessa energia coletiva.
O que salta aos olhos nessas interpretações é como, sutilmente, o foco da nossa jornada iniciática parece mudar de lugar. Em vez daquele esforço pessoal, da luta íntima com o maço da vontade e o cinzel da razão, surge uma certa dependência de algo externo. Mesmo que essa força seja vista como um fruto da nossa união fraterna, da energia que emana quando estamos juntos, não podemos deixar que isso nos afaste do essencial: o trabalho individual e contínuo na nossa própria 'pedra bruta', com as ferramentas que já conhecemos tão bem. Acreditar numa aura positiva no templo, gerada pela egrégora, pode até soar reconfortante, como um bônus dos nossos encontros. Mas, convenhamos, isso não pode, de jeito nenhum, fazer sombra àquela busca individual e consciente pelo saber que a tradição tanto preza, como bem aponta aquele artigo crítico que discutimos.
Pode-se argumentar que o desejo de pertencer, de sentir-se parte de algo maior, motiva muitos a abraçar essa ideia. E isso é compreensível. Todos buscamos sentido, comunhão, transcendência. Mas seria justo trocar o desafio da autotransformação por um consolo místico, por um conceito cujas fantasiosas tradição e fundamentos dentro do REAA são questionáveis? A Maçonaria não foi feita para confortar, mas para despertar.
O Manual de Procedimentos Ritualísticos para o Grau de Aprendiz do Grande Oriente do Brasil – Paraná (GOB-PR, 2016) é categórico ao afirmar, em sua 5ª Instrução:
“Ignorância é nada saber, saber mal o que sabe e saber coisas outras além daquelas que deveria saber.”
A instrução é clara: o Aprendiz deve cultivar o conhecimento útil, o saber fundado, o discernimento. Cada lição recebida em Loja é como um golpe do maço que elimina arestas, ou como o cinzel que afina a forma. Quando, porém, se busca algo além do que deve ser sabido, como a crença numa energia espiritual que se forma no templo, cuja base tradicional é incerta, incorre-se exatamente no erro que o rito procura corrigir.
A valorização do silêncio, da ordem e da harmonia não tem como fim a invocação de forças etéreas, mas a criação de um ambiente propício à introspecção, ao estudo e à elevação intelectual. Tudo isso são condições para que o trabalho simbólico ocorra: o trabalho de um homem sobre si mesmo.
Tem sido comum ver, antes do início dos trabalhos, a realização de mentalizações coletivas no Átrio, o vestíbulo onde os irmãos se paramentam antes de adentrar o Templo. Outras vezes, a Cadeia de União, no REAA, tem como única finalidade a transmissão da Palavra Semestral, sendo seu uso para preces e mentalizações uma prática não tradicional. Há ainda crenças que atribuem às borlas da corda de 81 nós a função de "aterrar energias negativas", ou às espadas dos cobridores a capacidade de "descarga vibracional", quando a regra adotada é que não se pode encostar a ponta das espadas dos expertos e cobridores no chão para não "descarregar as energias". Essas práticas, como sugere a crítica à egrégora, podem representar um afastamento do foco na razão e no simbolismo tradicional, flertando com o reino da superstição.
Tudo isso revela uma transição sutil, mas preocupante: sai o simbolismo como linguagem da razão, entra o rito como instrumento mágico. Sai o trabalho do maçom sobre sua pedra bruta, entra a esperança de que uma força externa lapide aquilo que nós mesmos deveríamos estar modelando. Não é um caminho mais fácil? Sim. Mas também mais ilusório, e potencialmente distante da essência do REAA.
Talvez não seja por acaso que o REAA se desenvolveu em plena era do Iluminismo. Em vez de dogmas, método. Em vez de reveladas verdades, o livre exame. O maçom não é um devoto: é um artífice. E sua obra-prima é ele mesmo. Como bem lembram os autores de Egrégora Maçônica – Uma Visão Crítica (2017), a propagação dessas ideias místicas não apenas deturpa os simbolismos, mas compromete a função educativa da Maçonaria, desviando-a de seus pilares racionais e filosóficos. A tradição do rito parece apontar para um caminho de autoconstrução individual, onde a razão e a vontade são as ferramentas primordiais, em contraste com as fantasias de uma energia coletiva onipotente.
Em um tempo em que o sentimentalismo parece querer preencher todos os vazios, a egrégora oferece uma solução tentadora: a de que basta estar presente, vibrar em sintonia, pensar positivo. Mas o rito é claro: é preciso estudar, refletir, lapidar-se. A iniciação não acontece por osmose, nem por contaminação espiritual. Ela se realiza no silêncio do labor interior, no esforço constante de quem sabe que a pedra não se desbasta sozinha. A busca por atalhos místicos, baseada em crenças sem lastro tradicional, pode, em última análise, enfraquecer o compromisso individual com a busca da Verdade, um dos pilares do REAA.
Quando trocamos o maço pela emoção coletiva, e o cinzel pela fé numa entidade invisível ou num campo energético místico, algo essencial se perde. A Maçonaria deixa de ser uma escola de consciência e se aproxima de um culto de consolo, potencialmente desviando-se de sua rica tradição filosófica e racional. É preciso recordar que cada Aprendiz é chamado não a ser parte de uma nuvem de pensamentos, mas a empunhar suas ferramentas e trabalhar. A verdadeira força da Maçonaria reside na capacidade de inspirar e guiar cada indivíduo em sua jornada única de autoaperfeiçoamento, um caminho pavimentado pelo estudo, pela reflexão e pela ação individual.
A pedra bruta segue lá. O maço e o cinzel também. A pergunta é simples, mas decisiva: vamos lapidar ou esperar que o ambiente nos transforme por algum passe de mágica esotérica?
Referências
- ADOUM, Jorge. O Livro Mágico. s.l.: Editora do Conhecimento, s.d.
- CAMINO, Rizzardo da. Simbolismo do Primeiro Grau – Aprendiz. São Paulo: Madras, 2004.
- CAMINO, Rizzardo da. O Aprendizado Maçônico. São Paulo: Madras, 2012.
- CAMPOS, Ailton. Rito Escocês Antigo e Aceito: História e Ritual. São Paulo: Maçônica Editora, 1993.
- D’ELIA JUNIOR, Raymundo. Maçonaria – 100 Instruções de Aprendiz. São Paulo: Madras, 2020.
- GOB-PR – GRANDE ORIENTE DO BRASIL – PARANÁ. Manual de Procedimentos Ritualísticos para o Grau de Aprendiz. Curitiba: GOB-PR, 2016.
- SIMÃO, David, et. al. Egrégora Maçônica – Uma Visão Crítica. Disponível em: http://pedro-juk.blogspot.com/2017/06/egregora-maconica-uma-visao-critica.html. Acesso em: 5 maio 2025.
- Egrégora Maçónica: Fenómeno de Força Espiritual? Freemason.pt. Disponível em: https://www.freemason.pt/egregora-maconica-fenomeno-de-forca-espiritual/. Acesso em: 5 maio 2025.
- Egrégora: um conceito totalmente estranho à tradição maçônica. O Ponto Dentro do Círculo. Disponível em: https://opontodentrodocirculo.wordpress.com/2021/03/20/egregora-um-conceito-totalmente-estranho-a-tradicao-maconica/. Acesso em: 5 maio 2025.
- SANTOS, Moisés do Vale. Maçonaria, Esoterismo e Espiritualidade. Produção independente. 2024. Disponível no Kindle.
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