Confesso que quanto mais estudo tentando encontrar o tal do “bode na Maçonaria”, mais ele escapa feito um animal arisco, se esquivando e desaparecendo, deixando somente um rastro de lendas e mitos. Existem muitas histórias que tentam explicar a relação entre o bode e a Maçonaria, mas o intuito aqui não é fazer juízo sobre qual delas é legítima (na verdade, suspeito que nenhuma seja). Ao contrário do que insistem muitos panfletos antimaçônicos, manifestações de igrejas, discursos de padres e pastores fanáticos e “causos” da internet, a história de que os maçons utilizam ou adoram bodes em suas sessões não passa de uma fantasia popular. Mesmo assim, o animal se tornou um dos mitos mais duradouros em torno da Maçonaria, mas, curiosamente, os próprios maçons o transformaram em motivo de deboche e brincadeira.
Avançando no tempo chagamos a 1307, quando o rei Filipe IV da França (Filipe, o Belo), ordenou a prisão em massa dos Cavaleiros Templários, na faina de se apoderar dos seus despojos e tesouros. Uma das principais acusações era que eles adoravam um ídolo chamado Baphomet. Apesar de Filipe IV não ser do Clero, atacou os Templários sob acusações de ordem religiosa, um pretexto conveniente à época. Porém, as reais razões para sua perseguição aos cavaleiros eram muito mais complexas.
Naquela época, os Cavaleiros Templários haviam se tornado uma importante instituição, emergindo como umas das mais ricas e importantes da Europa. A ordem chegou a funcionar como uma espécie de “banco internacional”. Felipe IV de França, tendo contraído enormes dívidas por causa das guerras travadas contra a Inglaterra e Flandres (importante região que ficava localizada ao norte da França, onde hoje é a Bélgica), havia pegado grandes quantias de dinheiro emprestado dos Templários e estava desesperado para saldar suas dívidas. Ambicioso, decidiu que apossar-se dos bens dos Templários seria a solução para sua crise financeira.
Havia muitos rumores e desconfiança sobre os rituais de iniciação dos Templários, porque eram secretos. A riqueza e o poder que acumulavam, aliados a esse sigilo, constituíram a principal razão para que fossem acusados de heresias e idolatria, práticas que eram levadas muito a sério naquela época. A acusação de adoração a Baphomet se encaixava muito bem nesse contexto, concitando medo e repulsa popular.
Todavia, cabe ressaltar que a imagem de Baphomet como se conhece hoje, não foi usada por Filipe IV em suas acusações. Você deve estar se perguntando: ora, então porque dissemos que umas das principais acusações de Filipe IV contra os Templários foi a adoração a Baphomet? Essa ligação entre Templários e Baphomet foi uma invenção do ocultista Eliphas Levi que se consolidou no século XIX. A figura de Baphomet, uma criatura com cabeça de bode e corpo humanoide, não corresponde a nenhuma descrição consistente do que os Templários supostamente adoravam. Essa ligação foi popularizada por Eliphas Levi numa de suas obras mais influentes, Dogme et Rituel de la Haute Magie, publicada entre 1854 e 1856. Nesta obra, Lévi não apenas descreve, mas também apresenta a famosa gravura de Baphomet que se tornou o símbolo mais reconhecível dessa figura. Ele interpreta Baphomet como uma representação da totalidade do universo, um símbolo do equilíbrio das dualidades (masculino/feminino, luz/trevas, bem/mal, etc.), e atribui essa figura aos Templários, argumentando que eles a adoravam como um símbolo esotérico e não como uma divindade demoníaca.
Entretanto, essa reinterpretação ocultista de Levi não possui qualquer evidência histórica de que os Templários realmente adorassem essa figura. As acusações de Filipe IV eram muito mais vagas e seu objetivo eram desprestigiar e desacreditar a Ordem por meio de uma série de heresias e “práticas abomináveis”, muitas delas induzidas sob tortura. As acusações de idolatria se referiam a diversos "ídolos" e "cabeças" que os Templários supostamente adoravam. Lévi pegou essas referências históricas nebulosas e as resumiu em sua própria visão mística e simbólica de Baphomet, ligando-o diretamente à suposta sabedoria oculta dos Templários.
Essa gravura de Baphomet publicada por Levi viraliza e, alguém a junta ao velho processo contra os Templários: se os cavaleiros tinham ídolo desconhecido, ora, eis a cara dele. Quando pregadores católicos passaram a mirar a Maçonaria, vista como herdeira dos Templários, a conexão já estava pronta; troca‑se a capa, o bode serve.
Mesmo com a imagem do Baphomet criada por Levi, a lenda do "bode maçônico" ainda precisava de uma história mais real e fácil de acreditar. Algo que fizesse sentido para quem lia e buscava detalhes que confirmassem o segredo. É nesse contexto que a obra do célebre autor José Castellani, ganhou relevância no final do século XX. Ele popularizou uma narrativa segundo a qual judeus palestinos, talvez inspirados pelo simbolismo purificador do bode expiatório bíblico, teriam desenvolvido o hábito de confessar seus pecados a um bode vivo. Esse animal era visto como o confidente perfeito, pois não falava. A história conta que o apóstolo Paulo teria visto esse costume e o levou para as primeiras comunidades cristãs, fazendo algumas adaptações. Muitos séculos depois, os inquisidores, irritados com o silêncio total dos maçons torturados, começaram a chamá-los de "bodes" por serem tão teimosos: “são como bodes, nada revelam”. Raymundo D'Elia Junior depois repetiu essa história em seu livro Maçonaria – 100 Instruções de Aprendiz. Assim, para os novos maçons brasileiros, a ideia de que a Maçonaria guarda segredos invioláveis ficou ainda mais forte.
É aqui então que Kennyo Ismail põe o pé no freio. Em seu livro Desmistificando a Maçonaria ele desmonta essa narrativa; diligentemente ele verifica que não há, nem na literatura rabínica, nem na patrística, nem tampouco nos registros da Inquisição, qualquer menção a “cabras auriculares” ou “sacerdotes caprinos”. Vale ressaltar ainda que o ato da confissão na Igreja Católica só viria a ser instituída no século XIII, cerca de 1200 anos depois do tempo do apóstolo Paulo. Bela alegoria, mas bem fraca em historiografia.
Talvez pior ainda do que Eliphas Levi, foi Leo Taxil. Entre 1885 e 1897 ele publicou uma série de “revelações” que diziam que os maçons faziam sacrifícios de crianças diante de Baphomet, praticavam orgias e deixavam cheiro de bode nas lojas. Não bastasse isso, o Papa Leão XIII ainda prestou apoio a estas ilações. Porém, doze anos depois, Leo Taxil admite publicamente que suas “revelações” eram mentiras inventadas para zombar dos católicos e dos maçons. Apesar do escândalo ter morrido ali, o estrago já estava feito. Até hoje encontramos na internet reproduções das publicações de Taxil sendo utilizadas como “provas irrefutáveis”.
Ainda no século XVIII, nos Estados Unidos, algumas lojas maçônicas passaram a adotar trotes para os neófitos por ocasião das suas iniciações. Ride the goat era como eles chamavam a “brincadeira” de fazer com que os iniciandos montassem em cabras mecânicas de madeira e sacolejavam. Essa brincadeira ultrapassa as fronteiras e acaba por alimentar a associação depreciativa entre bode e maçom, pois, se os maçons “cavalgavam” bodes por diversão, por que não fazê‑lo com propósitos sombrios? As referências disponíveis, porém, limitam-se ao campo do humor.
Então, juntando tudo, podemos dizer que quatro coisas principais criaram o mito do bode na Maçonaria:
- O bode expiatório da Bíblia, que é como se fosse o modelo de algo que carrega a culpa para longe.
- O Baphomet que os Templários supostamente adoravam (e que Lévi desenhou), dando uma cara de demônio para a história.
- As mentiras de Leo Taxil, que adicionaram um toque de coisas mais picantes e assustadoras.
- As brincadeiras de iniciação dos EUA, que deram um ar de comédia.
Aqui no Brasil poderíamos enumerar ainda a influência da obra de José Castellani. Porém, quando tentamos juntar essas partes e achar uma prova de que elas se uniram de verdade na história, a prova some. Só sobra fumaça e imaginação.
Chegando ao final, vale a pena perguntar: existe mesmo, em algum lugar escondido numa loja maçônica antiga, um bode de verdade, com carne, osso e chifres, esperando para ouvir segredos ou participar de rituais?
A resposta, com toda a certeza, é não. O bode que ainda existe é uma ideia, uma fantasia. Ele é uma história inventada que existe porque as pessoas têm um desejo sem fim por escândalos. E talvez seja essa a utilidade dele: nos mostrar como a imaginação pode criar "verdades" falsas quando a gente não pensa de forma crítica nem busca a verdade na história.
Por isso, toda vez que alguém usar a história do bode para acusar a Maçonaria de coisas estranhas, sugiro o seguinte: pergunte, com a calma que a Maçonaria ensina, "de onde veio essa história? Qual o texto original? Qual o documento?" E se a pessoa hesitar, lembre-a que as lendas muitas vezes continuam vivas não porque são verdadeiras, mas porque satisfazem a nossa vontade de imaginar o que não conhecemos. Nesse momento, o bode se esquiva e desaparece de novo; ele está somente nos vastos campos da imaginação sem limites.
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