É incrível pensar que, muito antes de dominarmos a arte de lançar foguetes ou de simular o comportamento da matéria em laboratórios superequipados, a humanidade já intuía que a liberdade, no fim das contas, começa mesmo é na mente.
A formação intelectual nos tempos antigos era estruturada em torno do que chamavam de Sete Artes Liberais — “liberais” justamente por serem destinadas aos homens livres. E o que seria um maçom, se não exatamente isso? Um ser humano livre, empenhado em se aprimorar constantemente através do conhecimento.
Divididas entre o Trivium e o Quadrivium, essas disciplinas formavam um verdadeiro mapa, um guia, para a construção da razão humana. Na Maçonaria especulativa, a presença delas é estrutural. Elas são, por assim dizer, o esqueleto invisível que dá sustentação ao edifício simbólico da Ordem.
O Trivium, é composto por:
- Gramática – a arte de empregar símbolos e a linguagem de forma correta
- Lógica – a arte de raciocinar com clareza, sem dar margem para dúvidas
- Retórica – a arte de expressar ideias com precisão e, fundamentalmente, com convicção.
Já o Quadrivium, por sua vez, compreende:
- Aritmética – o número em seu estado puro
- Geometria – o número no espaço, ganhando forma
- Música – o número no tempo, fluindo
- Astronomia – o número no espaço-tempo
Estas artes são ferramentas de edificação interior. O maçom deve ser dedicar a lapidar a própria inteligência com o mesmo esmero, com o mesmo rigor, que um escultor dedica ao desbastar a pedra bruta. E essa lapidação, convenhamos, exige método — e não qualquer método, mas um método que consiga resistir bravamente ao tempo, à superstição e, claro, à vaidade.
René Descartes, no alvorecer da modernidade, percebeu que a mente humana vive cercada de armadilhas: tradições meio capengas, dogmas herdados sem questionamento, fantasias que se disfarçam de sabedoria... um perigo!
Foi justamente para escapar dessas ciladas que ele propôs o Discurso do Método. E é impressionante como esse texto, escrito no século XVII, continua sendo um antídoto poderoso contra os vícios intelectuais que, até hoje, espreitam a doutrina maçônica.
Descartes começa seu método recomendando aceitar como verdadeiro apenas aquilo que se apresenta ao espírito de forma clara e distinta. Nas palavras dele:
O primeiro era o de nunca aceitar algo como verdadeiro que eu não conhecesse claramente como tal; ou seja, de evitar cuidadosamente a pressa e a prevenção, e de nada fazer constar de meus juízos que não se apresentasse tão clara e distintamente a meu espírito que eu não tivesse motivo algum de duvidar.
Ou seja, evitar ao máximo a pressa e a prevenção, e jamais incluir nos meus julgamentos algo que não se apresentasse de forma tão clara e evidente ao meu espírito que eu não tivesse motivo algum para duvidar.
Esse preceito de Descartes deveria estar gravado bem na entrada de cada Loja. Quantas interpretações simbólicas são aceitas sem qualquer senso crítico, só porque soam profundas? Quantas doutrinas sobrevivem simplesmente por serem repetidas à exaustão, e não por terem coerência de verdade?
O segundo preceito, por sua vez, orienta a decompor os problemas em partes menores, para que a compreensão seja mais completa:
O segundo, o de repartir cada uma das dificuldades que eu analisasse em tantas parcelas quantas fossem possíveis e necessárias a fim de melhor solucioná-las.
E aqui está uma chave interpretativa valiosa para o maçom diante de um símbolo complexo. Em vez de aceitar uma explicação pronta, mastigada, ele deve decompor o símbolo: separar seus elementos constituintes, entender cada uma de suas partes, distinguir suas diversas camadas. Tal qual na arquitetura, a solidez de uma construção depende da compreensão profunda da estrutura, e não apenas da beleza da fachada.
O terceiro preceito enfatiza a necessidade de ordenar os pensamentos, caminhando do mais simples para o mais complexo:
O terceiro, de conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos.
Na prática maçônica, isso significa construir o conhecimento simbólico de maneira progressiva, respeitando a sequência dos graus e a complexidade crescente dos ensinamentos, e evitando saltos interpretativos que possam levar a equívocos.
Por fim, Descartes recomenda revisões completas, para garantir que nada seja deixado de lado:
O último, de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse certeza de nada omitir.
Esse preceito reforça a importância da revisão constante das interpretações simbólicas, incentivando o maçom a reavaliar suas compreensões à luz de novos conhecimentos e reflexões, mantendo-se aberto à correção de possíveis equívocos.
Aplicado ao estudo simbólico, esse método permite ao maçom manter uma disciplina interpretativa firme diante dos perigos que, infelizmente, infestam a doutrina oral: invenções fantasiosas, simbolismos importados de outros sistemas, associações arbitrárias e mistificações que não têm nada de iniciáticas.
Quantas vezes símbolos maçônicos foram “explicados” com base em intuições pessoais, esoterismos da moda ou narrativas sem qualquer lastro documental? Quantos autores transformaram seus devaneios em “doutrinas”, só porque tinham o dom da oratória e ninguém ousava questioná-los? O método cartesiano, aliado à lógica do Trivium, é um antídoto poderoso contra essa “doença simbólica”, digamos assim.
Uma das ideias mais perigosas que se infiltraram no simbolismo maçônico é aquela de que “cada um tem a sua verdade”. Parece tolerante, eu sei, mas é terrivelmente corrosiva. Porque onde tudo é permitido, nada é exigido de fato. E quando nada é exigido, não há transformação real. Só há conforto, uma zona de acomodação. E conforto não combina nem um pouco com a busca incessante pela verdade.
O primeiro preceito cartesiano é cristalino: aceitar como verdadeiro apenas aquilo que se apresenta ao espírito de forma clara e distinta. Quantas doutrinas simbólicas se sustentam unicamente pela repetição mecânica? Quantas “explicações” circulam nas Lojas sem jamais terem sido examinadas com o devido rigor? O que falta, na maioria das vezes, não é conhecimento em si, mas sim a vontade genuína de confrontar a dúvida com método. É isso!
Ao trazer o Discurso do Método como referência, sugerimos que a busca incessante pela Verdade seja não apenas desejada no discurso, mas disciplinada na prática. Que o irmão se questione, diante de qualquer explicação simbólica:
É clara?
É coerente com o rito?
Tem base documental sólida?
É repetida por conveniência ou sustentada por um método rigoroso?
A verdade simbólica, afinal, não se mede pela quantidade de vezes que é repetida, mas sim pela sua capacidade de resistir ao crivo da clareza e da lógica. Se a Maçonaria almeja ser uma escola de sabedoria, não pode, de forma alguma, rejeitar os fundamentos da razão. Isso não faz sentido.
O método cartesiano, é importante frisar, não tem a pretensão de substituir a tradição maçônica, mas sim de preservar sua integridade diante da confusão doutrinária e do abuso da autoridade simbólica. É para isso que ele serve.
Na ausência de lógica, qualquer ideia, por mais absurda que seja, pode se travestir de verdade. Um irmão que discurse com segurança, cite termos difíceis e obscuros e invoque tradições supostamente ancestrais, pode construir em poucos minutos um mito doutrinário que será repetido por décadas a fio, se ninguém o confrontar com lucidez.
E é justamente aqui que a função da vigilância racional do maçom se torna evidente, como a luz do sol ao meio-dia. Não basta ter boa intenção ao interpretar um símbolo, não mesmo. É preciso método. É preciso rigor intelectual. É preciso ter humildade para dizer: “isso é apenas uma hipótese, uma suposição”, e ao mesmo tempo, firmeza para indagar: “onde é que isso está escrito?”
Afinal, a função primordial do símbolo não é refletir o que cada um quer enxergar, como num espelho, mas sim transmitir algo estruturado, exigente, que desafia o iniciado a decifrar, a desvendar, e não simplesmente a projetar suas próprias ideias. O símbolo, em essência, não é um espelho psicológico; é um código tradicional, com suas regras e especificidades.
A Lógica, essa ferramenta valiosa herdada do Trivium, permite ao maçom distinguir com clareza entre um ensinamento que possui base sólida e um que se sustenta apenas na eloquência do orador. Ela nos ajuda a identificar os atalhos mentais que alimentam as interpretações fantasiosas. E permite, acima de tudo, defender a tradição real da Maçonaria, e não suas caricaturas, suas imitações.
Ser vigilante, nesse contexto, não significa ser inflexível ou bitolado. Significa, antes de tudo, ser responsável. A crítica racional, quando bem intencionada, é uma forma genuína de zelo. É um escudo protetor contra o delírio institucionalizado, contra a maluquice coletiva. O maçom, portanto, não é apenas um operário do Templo, um construtor. Ele é também, e fundamentalmente, um guardião do sentido, do significado. E o sentido, convenhamos, só sobrevive quando há critério, quando há parâmetros claros.
O símbolo, como já dissemos, é um instrumento poderoso: ele tem a capacidade única de traduzir o invisível em forma visível, de tornar o abstrato concreto. Mas quando é entregue à imaginação sem qualquer critério, sem qualquer freio, deixa de ser uma ponte, um elo, e se transforma num véu, numa cortina de fumaça. Em vez de esclarecer, obscurece. Em vez de conduzir à verdade, alimenta a ilusão, a miragem.
E é justamente nesse ponto que o método cartesiano desempenha um papel fundamental, decisivo. Ele nos lembra, com veemência, que não basta que uma explicação simbólica “faça sentido” para nós, individualmente, ou que “pareça profunda” à primeira vista. Ela precisa, antes de tudo, resistir ao crivo implacável da clareza, da coerência interna, da ordem lógica e da revisão cuidadosa. Sem exceção.
Jorge Adoum (Mago Jefa), por exemplo, interpreta diversos símbolos maçônicos numa chave esotérica, com um viés místico, muitas vezes sincretizando-os com símbolos egípcios, hindus e cabalísticos, chegando inclusive a associar a Estrela Flamejante ao Olho de Hórus e a estrela de cinco pontas como um “símbolo solar oculto" — olha só!
Manly P. Hall, em sua obra “The Secret Teachings of All Ages”, estabelece paralelos entre símbolos maçônicos e uma variedade enorme de tradições antigas, ligando o G a conceitos como o Logos divino, o nome secreto de Deus ou até mesmo entidades mitológicas... uma salada!
Essas interpretações, é importante frisar, não constam em fontes regulares como os rituais das Potências regulares, as Old Charges, o Monitor de Webb, a obra de Castellani, de Bernard E. Jones, de Mackey — ou de qualquer outro escritor confiável — sendo, portanto, fruto de extrapolações criativas, não de uma transmissão legítima, com lastro histórico.
E essas interpretações, mesmo quando bem-intencionadas, acabam sendo, no fim das contas, traições. Traições, pois colocam o ego do intérprete, sua visão particular, acima do legado da Ordem, da tradição maçônica consolidada. Elas alimentam a vaidade intelectual e destroem a clareza. São, em última análise, fantasias que se disfarçam de sabedoria, como lobos em pele de cordeiro.
O símbolo, meus irmãos, não precisa ser reinventado a cada geração. Ele precisa, sim, ser compreendido em sua essência. E para compreendê-lo de verdade, é fundamental ter método, rigor, e não misticismo arbitrário. Intuição sem razão, convenhamos, é delírio puro e simples. E a Maçonaria não foi feita para delirar, mas para construir um mundo melhor, tijolo por tijolo.
O método de Descartes, ao exigir clareza e distinção no pensamento, não destrói o símbolo, muito pelo contrário, ele o resgata do barro da superstição, da obscuridade. Ele nos ajuda a manter o símbolo como uma ferramenta viva, pulsante, e não como um enfeite hermético, empoeirado, incompreensível.
O verdadeiro compromisso do maçom com a Verdade, portanto, não se resume a repetir um ideal bonito, inspirador. É organizar sua vida simbólica, moral e intelectual de tal forma que essa verdade seja buscada com critério, com método, com disciplina. A busca iniciática, meus irmãos, não é uma viagem de sensações, um turbilhão de emoções, mas sim uma marcha interior fundamentada na razão.
“Cogito, ergo sum” — penso, logo existo!
Para Descartes, pensar com método era a única maneira de garantir a existência como certeza absoluta — com o perdão do pleonasmo. Para o maçom, arrisco dizer, pensar com método é a única forma de garantir que a iniciação se traduza em transformação verdadeira, em mudança real.
Se a Verdade continuar sendo apenas uma palavra bonita, solene, impressa nos juramentos e nos discursos inflamados, a Maçonaria irá repetir ritos sem alma e perder seu sentido mais profundo. Mas se a Verdade for buscada com razão, com lógica, com vigilância constante, então, sim, o Templo ainda estará de pé, firme e forte como um carvalho.
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M∴M∴ Dyogner do Valle Mildemberger
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